Corrida e evolução: a história humana

Uma das coisas que me atraiu para prestar medicina aos 35 anos foi começar a ler sobre a ciência da corrida –primeiro livros sobre corrida, depois artigos científicos.

Eu era um corredor de rua razoável há 5 anos, procurei um livro aqui, outro ali para melhorar meu desempenho, fui me interessando até ler “The Story of the Human Body” (a história do corpo humano), de Daniel Lieberman, um dos principais pesquisadores da evolução do corpo humano.

Ele tem uma tese interessante: somos grandes corredores de longa distância de forma sustentada por adaptações evolutivas cruciais para a sobrevivência e desenvolvimento da nossa espécie. Não é só o bipedalismo, como aprendemos na escola. Tampouco a capacidade de caminhar para fazer as coletas. A corrida de longa distância também foi chave na evolução. Além de ser muito saudável praticar corrida hoje, como a medicina mostra, a corrida foi fundamental na história do nosso gênero.

No artigo que resumo abaixo, dá para entender melhor isso.

Corrida e a evolução humana

O artigo “Endurance Running and the Evolution of Homo” –Corrida de Longa Distância e a Evolução do Homo”–, é um dos meus preferidos sobre corrida. E um clássico dessa seara.

A ideia central do artigo de autoria de Dennis M. Bramble e Daniel E. Lieberman, publicado na Nature em 2004, é mostrar e destacar a importância da corrida de longa distância (endurance running, no artigo em inglês) na evolução humana.

O artigo examina como os humanos se saem na corrida de longa distância e em comparação com outros mamíferos, além de demonstrar as bases fisiológicas e anatômicas da capacidade de corrida de resistência em humanos e cogitar algumas hipóteses para o desenvolvimento desse tipo de passo no ser humano.

Os autores argumentam que as habilidades de corrida de longa distância não são apenas um subproduto evolutivo da capacidade humana de caminhar, mas uma adaptação evolutiva que desempenhou um papel crucial na sobrevivência e evolução dos primeiros humanos (o gênero Homo).

Eles mostram as bases fisiológicas e anatômicas que tornam os humanos especialmente adaptados para essa atividade, em comparação com outros mamíferos como cavalos, cachorros selvagens africanos e chimpanzés.

Não é o que parece quando lemos o parágrafo a seguir, mas continue com a gente.

“”Mesmo os melhores corredores humanos são relativamente lentos, capazes de sustentar velocidades máximas de apenas 10,2 metros por segundo por menos de 15 segundos. Em contraste, especialistas mamíferos em corrida, como cavalos, galgos e antílopes-pronghorn, podem manter velocidades máximas de galope de 15 a 20 metros por segundo por vários minutos. Além disso, correr é mais custoso para humanos do que para a maioria dos mamíferos, exigindo aproximadamente o dobro da energia metabólica por distância percorrida do que é típico para um mamífero de massa corporal igual.”

O artigo “Endurance Running and the Evolution of Homo” destaca várias adaptações evolutivas específicas que tornam os humanos aptos para a corrida de longa distância:

Pés arqueados: Os nossos pés proporcionam um mecanismo eficiente de armazenamento e liberação de energia elástica durante a corrida.

Tendões de Aquiles longos e fortes: Estes tendões, repletos de colágeno, atuam como se fossem molas, melhorando a eficiência da corrida ao armazenar e liberar energia.

Glúteos maiores: Músculos glúteos, o famoso bumbum, são bem desenvolvidos e ajudam na estabilização durante a corrida.

Perda de pelos e capacidade de suor: A habilidade de suar por glândulas espalhadas pelo corpo todo e a falta de pelo grosso,como outros primatas, permitem uma melhor regulação térmica, o que é crucial para corridas de longa distância sob o sol.

Alterações na cabeça e no pescoço: Essas partes do corpo permitem estabilizar a visão e manter o equilíbrio durante a corrida.

Capacidade pulmonar aumentada e metabolismo: O metabolismo humano é adaptado para maior consumo de oxigênio e melhor gestão da fadiga durante a corrida.

Membros inferiores longos: Nossas pernas proporcionam uma alavanca mecânica mais eficiente para a corrida.

Essas características são vistas como adaptações evolutivas que nos diferenciam dos outros primatas e que foram cruciais para a sobrevivência e sucesso evolutivo dos primeiros hominídeos.

Agora, a parte mais interessante do artigo. Por que evoluimos para sermos grandes corredores de grande distância

Veja algumas hipóteses.

Caça de persistência: Uma hipótese é que a capacidade de corrida sustentada de longa distância evoluiu como uma técnica de caça, permitindo que os hominídeos seguissem presas até que cansassem e desabassem sob o calor da savana africana. Essa técnica de caça, conhecida como caça persistente ou caça de resistência, teria dado aos primeiros humanos acesso a uma fonte rica em proteínas.

Eficácia na coleta de alimentos: Somos caçadores-coletores e a corrida de longa distância também pode ter sido uma estratégia eficaz para a coleta de alimentos, permitindo que os humanos cobrissem grandes distâncias para coletar recursos espalhados pela savana.

Escapar de predadores: Outra possibilidade é que a corrida de longa distância evoluiu como um meio de escapar de predadores ou de se mover rapidamente entre ambientes seguros.

Competição por carcaças: A capacidade de correr longas distâncias pode ter sido vantajosa para chegar rapidamente a carcaças antes de outros predadores, facilitando a alimentação a partir de restos deixados por predadores.

Adaptações climáticas e ambientais: A corrida de longa distância pode ter sido uma adaptação às mudanças climáticas e ambientais, permitindo que os humanos explorassem eficientemente habitats variados e dispersos.

About gustavo

Sou médico formado pela UFMG em 2023 e jornalista pela Unesp-2003. Trabalhei como repórter e redator na Folha de S.Paulo e como editor no Estadão.com. Já fiz mochilão de 5 meses pela América do Sul, quando editei um site independente de turismo. Meus interesses são variados e mutantes: aqui você poderá ler sobre medicina, corrida, cannabis, ciência e política. Ou não.